Didática da leitura e da escrita: questões teóricas
Telma Weisz
Este artigo — dirigido aos professores alfabetizadores e a outros profissionais interessados na alfabetização —se propõe a desmascarar uma falsa polêmica que ganhou indevido espaço na grande mídia: a de que o fracasso na alfabetização das crianças brasileiras se deve ao construtivismo e que a solução para este fracasso é a adoção do método fônico. Em primeiro lugar cabe esclarecer que a absoluta maioria dos alunos brasileiros continua a ser alfabetizada com cartilhas que são incompatíveis com uma visão construtivista da alfabetização, mesmo quando se tenta agregar este rótulo a cartilhas editadas após a publicação dos PCNs.
Para esclarecer esta questão é necessário explicitar as diferenças entre posições teóricas sobre o tema da aprendizagem da leitura e escrita e suas implicações didáticas. Iremos aqui analisar duas destas diferentes posições que definem diferentes didáticas — a que tem como referência a psicogênese da língua escrita e a que toma como parâmetro, atualmente, os trabalhos sobre consciência fonológica — a partir dos seguintes focos de análise: a) as concepções de aprendizagem que as fundamentam; b) a natureza do objeto a ser aprendido: o sistema de representação e a linguagem escrita em português; c) a concepção de ensino assumida por cada uma.
Para falar destas duas diferentes concepções de ensino utilizaremos como referência para a primeira, a que assume a psicogênese da língua escrita, a metodologia proposta no Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA) e, para a segunda, os métodos de alfabetização que se apresentam como fônicos. Fazendo a ressalva de que, apesar de ter sido produzido pelo MEC, o PROFA, que recém começou a ser utilizado para formar alfabetizadores, apesar de seus excelentes resultados, ainda não conseguiu afetar a maioria dos professores e muito menos as nossas tristes estatísticas.
As concepções de aprendizagem
Provavelmente a mais importante diferença entre as duas, no momento, mais conhecidas vertentes da didática da alfabetização em nosso país está relacionada às diferentes concepções de aprendizagem que as fundamentam: o construtivismo interacionista de uma e o empirismo behaviorista das outras.
A metodologia proposta pelo PROFA concebe o aprendiz como sujeito ativo, construtor de conhecimento. Como alguém que pensa sobre a escrita presente no mundo em que vive, desde que deste mundo também façam parte leitores que possam interpretá-la para ele. Um sujeito que, pensando sobre a escrita que observa nas práticas sociais ao seu redor, constrói hipóteses, idéias sobre o que a escrita representa e sobre como ela representa o que se fala. Estas idéias que os aprendizes constroem sobre a escrita evoluem de uma forma já verificada em diversas pesquisas.
Para saber o que pensa o aprendiz sobre o sistema de escrita é preciso solicitar-lhe que escreva textos que não lhe foram ensinados previamente e pedir-lhe para interpretá-los logo depois de grafar cada elemento, cada parte escrita. Pesquisas transversais mostram — e longitudinais confirmam — que estas produções escritas têm uma evolução perfeitamente previsível e que se organizam em três grandes períodos:
“1) O primeiro período caracteriza-se pela busca de parâmetros de diferenciação entre as marcas gráficas figurativas e as marcas gráficas não-figurativas, assim como pela formação de séries de letras como objetos substitutos, e pela busca das condições de interpretação desses objetos substitutos.
2) O segundo período é caracterizado pela construção de modos de diferenciação entre os encadeamentos de letras, baseando-se alternadamente em eixos de diferenciação qualitativos e quantitativos.
3) O terceiro período é o que corresponde á fonetização da escrita, que começa por um período silábico e culmina no período alfabético.”.
Por que estamos dando todas essas explicações se o nosso tema é a didática? Porque, apesar da difusão de alguns termos relacionados à psicogênese da língua escrita, poucos, muito poucos, têm clara a teoria do conhecimento que permitiu, há três décadas, iniciar uma revolução conceitual na alfabetização. Foi essa teoria do conhecimento, essa concepção de aprendizagem, que permitiu que se mudasse completamente as perguntas, as questões que norteavam a investigação em alfabetização.
Deixou-se, em primeiro lugar, de buscar compreender o que havia de errado — de deficiente ou deficitário — com as crianças que não tinham sucesso na alfabetização ( e que no Brasil correspondiam a inacreditáveis 50% das matriculadas na 1a série ) e tratou-se de descobrir como aprendiam as que o tinham. Para isso pediu-se a alunos de educação infantil, que não recebiam instrução em alfabetização, que escrevessem textos que não lhes tinham sido previamente ensinados. Este procedimento não faria nenhum sentido em uma investigação behaviorista pois a idéia de que os alunos possam saber algo sobre a escrita que não lhes tenha sido previamente ensinada não tem lugar nesta concepção de aprendizagem. Ou seja: em uma abordagem behaviorista não é possível supor que o aluno saiba algo sobre a escrita sem que alguém lhe tenha diretamente ensinado. Menos ainda que o aluno utilize as informações que capta para constituir um sistema de escrita que não existe em sua língua — caso das escritas silábicas que, apesar de adequadas ao japonês, por exemplo, nunca puderam ser reconhecidas como parte do processo de aprendizagem da escrita em português. Aliás, reconhecidas elas eram, tanto que se encaminhava para tratamento clínico todas as crianças que se arriscavam a escrever da forma que pensavam que deviam. Reconhecidas e medicalizadas: dizíamos que essas crianças “comiam” letras e que isso indicava a presença de problemas psicológicos que deveriam ser clinicamente tratados.
A teoria do conhecimento empirista, que dominou tudo o que se fez em alfabetização até a publicação, no Brasil, do já citado livro “Psicogênese da Língua Escrita” — e continua dominando, pois a absoluta maioria dos professores alfabetizadores brasileiros trabalha com as mesmas cartilhas que usava antes ou com versões “modernizadas” delas —, considera que os alunos entram na escola igualmente ignorantes de tudo o que se refere à escrita. Que basta ensinar quais letras correspondem a quais segmentos sonoros para eles compreenderem o modo de funcionamento do sistema alfabético, e que a história de que é preciso participar de situações de reflexão sobre a escrita para aprender a ler e escrever é bobagem: o importante seria memorizar as relações fonema/grafema. Que ler é apenas transformar grafemas em fonemas e que escrever é também apenas o seu inverso: transformar fonemas em grafemas.
O sistema de representação e a linguagem escrita em português
A redução do processo de alfabetização à simples memorização de um conjunto de correspondências grafofônicas reduz também a aprendizagem do sistema de escrita à mera aprendizagem de um código. Contra todo o conhecimento acumulado pela lingüística nas últimas décadas, reduz-se a língua a pura fonologia — ignorando-se o fato de que tratando a escrita como pura transcrição da fala o que se obtém é uma linha direta para o analfabetismo funcional, ou seja, para a formação de gente capaz de oralizar textos sem compreendê-los. Pois o mundo da cultura escrita, no qual cabe à escola introduzir todos os seus alunos, é um mundo intertextual que se organiza em gêneros com linguagem própria, muito diferente da linguagem que se usa para falar. Uma diversidade a que o aluno da escola pública só terá acesso se seu professor tiver clareza sobre duas questões: a) além do sistema alfabético, o aluno precisa aprender a linguagem que se usa para escrever; b) a idéia de que o treinamento em decodificação leva a uma “leitura compreensiva” é um retorno a práticas que condenaram os 50% de alunos que repetiam (e em muitos lugares continuam repetindo) a 1a série todos os anos, desde que dispomos de estatísticas, como podemos ver abaixo:
Taxa de reprovação ao final da 1a série do ensino fundamental (IBGE/INEP)
1956 | ........ | 1987 | 1988 | 1989 | 1990 | 1991 | 1992 | 1993 | 1994 | 1995 | 1996 |
56,6% | ........ | 51% | 52% | 49% | 48% | 48% | 48% | 49% | 46% | 46% | 41% |
As concepções de ensino assumidas pelas diferentes didáticas
O que alguns autores/editores de cartilhas vêm tentando difundir é que a consciência dos fonemas é pré requisito para aprender a ler e escrever — posição defendida pelos três métodos de alfabetização atualmente em campanha de difusão e vendas na mídia.
Essa posição, se tomada a sério, levaria o professor a concentrar as atividades de alfabetização no treinamento da capacidade de identificar, suprimir, agregar ou comparar fonemas. Ele tentaria ensinar isso oralmente e, para ser coerente com a idéia de pré requisito, esta instrução deveria ser prévia ao início de qualquer atividade de escrita. Se, além disso, o professor estiver convencido de que é possível aos alunos chegar diretamente ao sistema alfabético via ensino direto, então teremos o mesmo diálogo de surdos que nos tornou os campeões mundiais do fracasso escolar na alfabetização, nos últimos 50 anos. Teremos professores “ensinando” segmentação fonêmica a alunos que entram na escola com concepções anteriores ao período da fonetização da escrita.
A metodologia de alfabetização proposta pelo PROFA opera a partir de hipóteses muito diferentes. Em primeiro lugar vemos o professor como alguém que precisa ser capaz de avaliar o momento do processo de alfabetização em que está cada um de seus alunos. Que ensina organizando situações de aprendizagem que exigem que os alunos ponham em jogo o que pensam sobre a escrita, ao mesmo tempo em que recebem informação sobre a forma, o nome e o valor sonoro das letras. Que sabe que o fato de trabalhar com textos não significa que não se focaliza sistematicamente o sistema alfabético e suas características: quais letras e em que ordem é preciso para escrever determinado item lexical. Um professor que aceita escritas não convencionais ao mesmo tempo que as problematiza. E que nunca perde a relação dialógica com cada um de seus alunos pois sabe que, fora dela, isto é, quando o ensino se reduz a mera transmissão mecânica de informações, o ato de ensinar se transforma em um ritual, uma encenação teatral, onde um finge que ensina e os outros fingem que aprendem.
Os mesmos editores de cartilhas acima referidos têm feito afirmações sem qualquer fundamento sobre a didática da alfabetização de corte construtivista interacionista. Uma delas é que esta didática foi “derrotada” e abandonada tanto na França como nos EEUU. Esta didática nunca foi “derrotada” nem nos EEUU nem na França, não porque ela seja “invencível” e sim porque ela é desconhecida nestes dois países. As práticas didáticas que estão sob ataque nestes dois paÍses são as seguintes: na França a proposta de leiturização cujo expoente mais conhecido no Brasil é Jean Foucambert e nos EEUU o movimento Whole Language. Nenhum dos dois é ou se diz construtivista.
Foucambert tem uma posição radical no que se refere à alfabetização, como se vê na apresentação do livro A Leitura em Questão:
“Estabelecidas as condições escolares para uma efetiva prática da leitura, cabe abandonar as práticas que visam levar as crianças a adquirirem o comportamento alfabético, por meio da análise das características formais do sistema de escrita. Para o autor, é essa perspectiva que fixa o hábito da oralização que, por sua vez, freia o ato da leitura: a alfabetização é antagônica à leitura. O aprendizado deve concentrar-se no desenvolvimento das estratégias de leitura e não mais na aquisição das regras de funcionamento do sistema alfabético, supostamente a única via de acesso à escrita”
Em um seminário interno no Instituto de Psicologia da USP (1994), tivemos com o professor Foucambert uma interessante discussão. Para ele, o fato da psicogênese da língua escrita, tal como descrita por Emilia Ferreiro, ocupar-se de desvendar o processo através do qual as crianças chegam a estabelecer relações entre o falado e o escrito indicava que esta teoria seria apenas mais uma das que consideravam que o acesso à leitura passa necessariamente pela compreensão do sistema alfabético. Coisa que ele, como vimos acima, questionava.
Quanto à polêmica que acontece com relação ao movimento whole language nos EEUU, o que se deduz das publicações a respeito é que os americanos estão no meio de uma batalha entre dois exércitos: code-emphasis X whole language , entre os que defendem que só se ensine o que chamam “o código”, isto é as correspondências fonema/grafema e os que atuam como se a aquisição do sistema alfabético fosse uma conseqüência natural da imersão na linguagem escrita. Qualquer semelhança com a “guerra dos métodos” (método fônico X método global) que marcou a discussão sobre alfabetização nos anos 20 do século passado não é mera coincidência.. Talvez por isso os novos difusores do método fônico no Brasil nos atribuam a utilização do “método global ou ideo-visual”, coisa que nos soa como eco de um passado remoto.
A didática apresentada no PROFA, coerente com os Parâmetros Curriculares Nacionais, não propõe nenhum método ideo-visual nem nega a existência de um processo de tomada de consciência dos aspectos fonológicos da língua no processo de alfabetização. Mas ela é, tanto do ponto de vista de seus fundamentos como do ponto de vista metodológico, bem mais complexa do que essa velha e rasa discussão sobre se a alfabetização acontece via ouvido ou via olho. Em primeiro lugar, não estamos presos à forte tradição dos países de língua inglesa de que primeiro há que ensinar a ler, só depois se pode ensinar a escrever. Temos claro que para compreender o sistema alfabético de escrita em português são necessárias tanto atividades de leitura quanto de escrita, pois ambas permitem ao aprendiz refletir sobre diferentes características do sistema.
Consideramos também que a oferta de informação sobre as letras e seu valor sonoro deve dialogar com as hipóteses das crianças e informar o que faz sentido para elas em cada momento do seu processo de aquisição do sistema alfabético. Da mesma forma que o aprendiz aprende a ler e escrever à medida que vai elaborando novas hipóteses sobre o sistema de escrita, a cada reconstrução corresponde também uma reconstrução do seu nível de consciência fonológica e não se trata de uma ser pré-requisito para a outra. Pois nos baseamos em investigações que mostraram que se aprende a ler e escrever através de um processo dialético onde a aprendizagem acontece pela superação das contradições entre idéias do próprio aprendiz e destas com relação à escrita convencional.
O problema com a polêmica que se quer importar dos países “desenvolvidos” — sob o argumento de que eles é que entendem de educação enquanto nós só entendemos de futebol — é que ela não contribui em nada para o debate das questões da educação brasileira: não está acrescentando nada ao estado do conhecimento na área; não está ajudando em nada a enfrentar o nosso verdadeiro desafio que é o de criar a competência necessária para alfabetizar todas a nossas crianças e não apenas as que já chegam à escola com concepções relativamente avançadas sobre o sistema de escrita em português. Competência que precisa ser construída pelo professor e que não pode ser substituída pela adoção desta ou daquela cartilha, seja ela fônica ou metafônica.
O que esta falsa polêmica parece estar buscando é apenas o incremento das vendas de material didático reciclado: as nossas velhas cartilhas embrulhadas em um discurso de “vencedores”.